ÉTICA, SOLIDARIEDADE E COMPLEXIDADE

Ética, solidariedade e complexidade é um livro sobre a diversidade: reúne as intervenções dos componentes de uma mesa-redonda sob a coordenação do Prof. Edgard de Assis Carvalho, organizada pela Associação Palas Athena e realizada em maio de 1998, no TUCA - Teatro da Universidade Católica de São Paulo (PUC). Por ocasião de mais uma vinda de Edgar Morin ao Brasil. A mesa foi formada por representantes de várias áreas do conhecimento. Essa heterogeneidade é uma tradução do ideal transdisciplinar, no qual todos os enunciados são igualmente válidos e se entrelaçam em busca do consenso, quer dizer, do conhecimento comum.
É exatamente a tônica das falas dos participantes, cada qual a seu modo, todos diferentes, mas todos inspirados pela ética da solidariedade.


CUMPLICIDADE, COMPLEXIDADE, (COM) PAIXÃO

Maria da Conceição de Almeida – É antropóloga, professora de terceiro ciclo em ciências sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e coordenadora de pesquisa do grupo de estudos da complexidade, desenvolvido nessa universidade.
         Pensar uma ética da cumplicidade, da complexidade e da (com) paixão é deixar-se mover por uma estética do pensamento que abre mão dos limites confortáveis da ciência-reino último da palavra, para lançar-se na errância da criação, outra forma de dizer da condição humana.
            É oportuno lembrar que o sonho que vislumbrava as teorias científicas como cartas de alforria do pensamento, como estatuto de eternidade, como prontuário de unificação das interpretações e resolução para todos os problemas do planeta, acabou. Em seu lugar, o outro sonho pede passagem, pede assento, quer ser experimentado pelo ser do conhecimento e da cultura que somos nós. Este sonho inclui a consciência da biodegradabilidade, da dispersão e da singularidade – atributos, ordens ou movimentos que impregnam todas as coisas e nos fazem lembrar que, também nós, somos simultaneamente destruição e criação, ordem/desordem.
            É possível transformar a ética numa estética da vida, desde que entendamos vida e pensamento como um “coletivo entre homem e coisas”, conforme expressão de Pierre Lévy. A ideia de ética como estética da vida pressupõe, entre outras coisas, entender o homem como uma matéria desejante, o único ser que sonha acordado e é capaz de construir, não “o melhor dos mundos, mas o mundo melhor”( Morin).
            Nômade, flaneur, caminhante, são atributos de um novo homem que quer correr o risco de pensar complexo, que quer abrir os braços para o abraço: abraçar.
         Uma ética da complexidade, da cumplicidade, e da (com) paixão, requer que repensemos as idéias de prudência, temperança, desprendimento. Para Morin: “Prudência sim, mas isso não significa esterilizar nossas vidas? Temperança sim, mas será mesmo necessário evitar a experiência da consumação e do êxtase? Desprendimento sim, mas será mesmo necessário renunciar os laços da amizade e do amor?”

CIÊNCIA, ÉTICA E SOLIDARIEDADE

Nelson Fiedler-Ferrara é físico teórico, professor doutor do Instituto de Física da USP. Bacharel em Letras Modernas (italiano e português) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
            Nessa mesa-redonda busca-se refletir a respeito de quais seriam as bases de uma ética complexista. Essa ética, a meu ver, há de ser uma ética solidária, baseada na cooperação e na qualidade do que se produz, do que se vive e do que se pensa.
            Vivemos um tempo de contradições. Se por um lado a técnica e a ciências produziram desenvolvimentos notáveis neste século, vive-se uma
profunda crise ética. Faz-se necessária uma conjugação orgânica entre verdade, liberdade individual e justiça social.
            Os homens que se preocupam com a ciência não estão imunes a essa crise. Competição - e não cooperação - e quantidade – e não qualidade – têm, infelizmente sido a regra e não a exceção nos meios de produção intelectual.
            Restringindo-me às ciências exatas – particularmente a Física –apresento um exemplo de teorias onde estão presentes certas características que muitas vezes são imaginadas pertencer exclusivamente às ciências humanas.
            Nas ciências exatas podem-se citar muitos exemplos de subdeterminação das teorias pelos fatos. Um deles, talvez surpreendentemente para alguns, é a interpretação da Mecânica Quântica. Essa teoria é dotada de algum algoritmo poderosíssimo – um procedimento para cálculo absolutamente não dúbio, e que fornece resultados concordantes, com alto grau de precisão com a realidade expressa pelos experimentos. Contudo, há várias interpretações conceituais possíveis para a Mecânica Quântica aparentemente consistentes com aspectos expressos pela realidade fenomenológica.
            A mais utilizada e conhecida é a interpretação probabilística de Schrödinger. Nessa interpretação, utilizam-se funções de onda que resultam da solução de uma equação – a Equação de Schrödinger. Os valores de posição de uma partícula, velocidade, e outras grandezas de interesse são calculados apenas como valores médios, utilizando-se a função de onda e um procedimento matemático adequado. A Equação de Schrödinger, mais esse procedimentos matemáticos, constituem o algoritmo a que nos referimos anteriormente. A função de onda, mais exatamente, o seu módulo ao quadrado, é interpretado como a probabilidade de encontrar a partícula numa dada região do espaço.
            Complexidade pode ser medida como número de elementos, correspondendo ao número mínimo de elementos para se realizar uma tarefa, não se levando em conta quão intrincadas são as interconexões entre os componentes. Outras definições tratam complexibilidade como quantidade de retroalimentação, levando-se em conta não somente o número de conexões, mas também a quantidade de conexões de retroalimentação do sistema.
            Quando a decomposição é feita segundo as relações causais, obtém-se  complexidade interacional. Algumas definições propõem que a complexidade não tenha um valor absoluto, mas relativo, o qual depende da escolha do nível de definição ou das dimensões mínimas dos elementos constitutivos.
            Desenvolvimento com progresso só se faz quando princípios éticos guiam primordialmente as relações humanas, em particular o trabalho intelectual. Ao cidadão cabe cobrar daqueles que fazem ciência esses princípios, mas isso o obriga também à adoção de atitudes igualmente éticas no sentido de uma sociedade justa. Nosso olhar sobre o mundo deve ser de totalidade, de abertura, de leveza, de clareza, de flexibilidade e de sensibilidade. Apenas uma ética solidária – cooperativa e baseada numa intenção de qualidade do que se pensa e se faz – pode permitir a superação dos dilemas nos quais estamos mergulhados.


TERNURA, COMPAIXÃO E SOLIDARIEDADE

Nelly Novaes Coelho é uma professora de literatura em língua portuguesa na pós-graduação da USP. Crítica literária, criadora da cadeira de literatura infanto-juvenil no Brasil, autora de vários livros na área de literatura de educação, desenvolve há anos um trabalho de educação junto aos especialistas na linha da complexidade.
            Não por acaso, também foi com Crime e Castigo que descobri esse genial russo, um dos grandes mestres do romance universal, e aprendi a verdadeira dimensão da ternura, da compaixão pelos que sofrem, da autentica solidariedade humana e, principalmente, a possível alegria que pode surgir da dor.
            A ética interior (não de fora para dentro mas de dentro para fora) como compreensão do mundo, como direção do espírito.
            A solidariedade, não só como pensamento abstrato, mas sim referida à concretude das relações que ligam efetivamente os seres humanos uns aos outros, porque todos nós procedemos de um tronco comum: o Anthropos.
            A complexidade, como visão abrangente da vida do homem, do mundo , em suas diferenças, semelhanças e contradições, que se interpenetram e interagem entre si de maneira invisível, mais profunda.

A ÉTICA DO SUJEITO RESPONSÁVEL
Edgar Morin
Nossas finalidades não nos são impostas, no sentido que, nas nossas sociedades individualistas, a ética não se impõe imperativamente nem universalmente a cada cidadão; cada um terá de escolher por si mesmo os seus valores e ideais, isto é, praticar a auto-ética. Estas finalidades podem ser particulares, voltadas à única pátria, a uma pessoa querida. Hoje, um grande número de nós vive sob a influência das grandes religiões universalistas como o budismo, o cristianismo, o islamismo. A mensagem fraternalista dessas religiões foi laicizada e endossada pela revolução francesa, depois amplificada e universalizada pelo socialismo. A fraternidade e a compaixão foram incessantemente desmentidas pelas práticas cometidas em nome dessas regiões e do socialismo, mas permanecem o fundo subjacente do qual podemos retirar e eleger nossas finalidades.
            Eleger nossas finalidades implica integrá-las profundamente em nossos espíritos e almas, jamais esquecê-las, jamais renunciar a elas, mesmo se perdermos a esperança de constatar sua realização.
            Elas encontram-se primeiramente inscritas na trindade “LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE”, sabendo-se que, entre esses termos existe sempre não apenas complementaridade, mas também antagonismo, e que assumir a complexidade trinitária implica assumir uma estratégia complexa.
            A finalidade principal da trindade se realiza na fraternidade. Ela é simultaneamente meio e fim. Tem o significado antropológico universal. Civilizar a Terra é uma finalidade inseparável da precedente.
            O problema da responsabilidade deve ser colocado em termos complexos. De um lado, cada um deve reconhecer-se responsável por suas palavras, por seus escritos, por seus atos. De outro, tomando como base a ecologia da ação, ninguém é responsável pelo modo como suas palavras são entendidas, como seus escritos são compreendidos, como seus atos são mal interpretados, distorcidos.
            Em conclusão, a ética não pode reduzir-se ao político, do mesmo modo que o político não pode se reduzir à ética. Não podemos opor esses dois termos de modo absoluto e nem complementarizá-los harmoniosamente. Estamos condenados à sua dialógica, ou melhor, a manter simultaneamente seu laço indissociável e seu antagonismo irredutível. Somente esta dialógica poderá fazer da política, essa arte da incerteza, uma grande arte que seja posta a serviço do ser humano.
                                                                     
                                                                                               Edgard de Assis Carvalho.



Um comentário:

  1. Texto bem interessante que suscita algumas boas reflexões acerca do currículo. Uma postagem para ser estudada, discutida e apreciada.

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